20 August 2006

nada

Ela parece tudo, menos o que é. Os olhos puxados, as roupas modernas e, principalmente, o jeito calmo e tranquilo daquelas pessoas que já descobriram qual dos milhões de alvos tentar acertar. Quem a vê passando pela rua mal imagina o que passa pela cabeça de Susana.

Susana é descendente de japoneses e nasceu e cresceu no bairro de Santa Cecília. Os pais começaram como feirantes e logo a tenda virou um mercadinho que, depois de algum esforço, muita gente contrariada e muita lavação de roupa suja, virou um mercadão. Susana cresceu no meio de frutas e sabe escolher laranjas como ninguém.

E palavras também. Aos vinte e dois anos terminou de escrever o livro que começou aos nove. Chamava-se Amarelo e contava a história de uma garota que nunca desanimava. O livro, apesar de bem escrito, não foi um sucesso de crítica e de vendas. Susana continuou tranquilamente o final de seu curso de jornalismo e olhava com carinho para Amarelo na estante, sem saudades ou nostalgia de (melhores) tempos de inspiração.

Três anos depois, alguns desvios de percurso e trinta nós na garganta fizeram com que Susana pensasse novamente em colocar seus pensamentos no papel. Mas Susana como que tinha perdido o tato. Milhões de idéias - e opiniões - na cabeça mas o bonito não conseguia ir para o papel em outras palavras além de... bonito.

Fora que não era tão fácil assim. Precisava de uma história. Algo com que pudesse amarrar tudo em volta. Como uma estrutura de arame para preencher com bolinhas de espuma até montar todo seu boneco. Quando começou a se preocupar de fato com a história do livro, tentou achar inspiração, um começo em todo e qualquer acontecimento. Se preparou e andava com um bloco de anotações pela rua, esperando por alguma situação. Lia os jornais enquanto enfrentava seus 30 minutos diários de transporte público esperando encontrar algum momento, algo com que pudesse começar. Mas nada.

Podemos olhar para os milhões de pequenos momentos que compõe a nossa vida de diferentes maneiras. Podemos tentar deixá-los passar superficialmente por nós - e provavlemente é desta maneira com que lidamos com 98% do que ocorre conosco - ou prestar atenção e nos atermos a um pequeno detalhe, olhar para este detalhe com todo cuidado e descobrir nele tonalidades e sombras, pequenos movimentos. Não é uma questão de sim ou não, melhor ou pior. Escolhemos o que nos afeta ou não, ao que damos importância ou não. Não escolhemos o que amamos - infelizmente - mas podemos decidir como queremos olhar para o ser/coisa amada.

Susana se importou com a temperatura agradável numa noite enquanto voltava prá casa e não pensou duas vezes antes de abandonar o ônibus e voltar andando. Era início do verão mas o tempo estava limpo e quente e, apesar do barulho, ela sentiu e aproveitou cada passo que deu na sua caminhada de volta para casa.

Sua cidade não era quieta. Nem tranquila. Tampouco alegre. Ia caminhando lado a lado com os carros congestionados e, sem perceber, reparando na sequência de cores que ia se formando. Vermelho de um lado, branco do outro, verde, laranja, azul nas laterais. Uma bicicleta no meio, muitas motos, buzinas. O trânsito que caminha e pára, lento e descontínuo enquanto ela era o único elemento lógico e constante no meio do caos.

Andando foi até chegar perto de casa e, quanto mais próxima, mais longe queria estar. A cidade havia deixado-a em transe e, mais do que isso, tomou Susana de sua casa, fazendo-a sentir que, de todos os lugares do mundo aonde queria estar, aquele era o menos provável.

Assim que entrou em seu apartamento, ele pareceu terrivelmente frio, seus móveis todos estranhos, velhos, gastos. Sentou-se em sua cama e, ao invés de dormir, chorou e pediu por uma vida nova. Uma vida que pudesse contar em um livro.

Susana enfrentou a hostilidade e dormiu. Estava tão cansada em tão poucos minutos que simplesmente dormiu. Não comeu, não tomou banho. Fechou os olhos olhando para seu guarda roupa branco, as roupas que tinha e percebendo como ultimamente tudo que tinha era preto.

Acordou achando que o dia seguinte traria um pouco mais de alívio e que sua casa não a expulsaria de lá. Tomou café vendo televisão, olhou para seu bloco de notas jogado em cima da mesa - bagunçada com contas, papéis velhos e outras anotações, maldição que o que mais gostava eram pedaços de papel, sempre tão cheios, sujos e sempre tão vivos, impedindo-a sempre de jogá-los fora.

Escreveu então sobre o tempo. Sobre como fazia sol lá fora mas como sentia frio naquele dia. Em como a luz das 10 da manhã batia na trepadeira de sua varanda, em como o vento mexia todas as folhas prá lá e prá cá e em como, apesar de todo aquele céu azul, sua vida não poderia depender menos das condições de temperatura, pressão e umidade.

Terminou o texto e o olhou desconfiada, sempre tentada a amassá-lo todo e a jogá-lo fora. Mas guardou. E passou o dia, fez o que fazia sempre, sentiu o frio de sempre, se protegeu como pode e dormiu cedo porque não tinha mais nada

(escrevi ano passado)

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